TRÊS DIAS PARA VER
Por Helen Keller
Publicado no Reader’s Digest (Seleções) há 70 anos
Publicado no Reader’s Digest (Seleções) há 70 anos
O
que você olharia se tivesse apenas três dias de visão?
Helen
Keller (1880-1968), uma mulher extraordinária, cega, surda e muda desde bebê,
nos chama a atenção para a apreciação de nossos sentidos, algo que normalmente
não percebemos. Apenas de posse do sentido do tato e uma perseverança
inigualável, sob a orientação de Anne Sullivan Macy, Keller pôde aprender a ler
e escrever pelo método Braille, chegando mesmo a falar, por imitação das
vibrações da garganta de sua preceptora, as quais captava com as pontas dos
dedos. O esforço de sua mente em procurar se comunicar com o exterior teve como
resultado o afloramento de uma inteligência excepcional, considerada a maior
vitória individual da história da educação. Ela foi uma educadora, escritora e
advogada de cegos. Tinha muita ambição e grande poder de realização. Ao lado de
Sullivan, percorreu vários países do mundo promovendo campanhas para melhorar a
situação dos deficientes visuais e auditivos. É considerada uma das grandes
heroínas do mundo. A Srta. Helen alterou nossa percepção do deficiente.Como deve ser mais fácil e muito mais satisfatório para você, que pode ver, perceber num instante as qualidades essenciais de outra pessoa ao observar as sutilezas de sua expressão, o tremor de um músculo, a agitação das mãos. Mas será que já lhe ocorreu usar a visão para perscrutar a natureza íntima de um amigo? Será que a maioria de vocês que enxergam não se limita a ver por alto as feições externas de uma fisionomia e se dar por satisfeita?
Ah, tudo que eu veria se tivesse o dom da visão por apenas três dias!
À tarde daria um longo passeio pela floresta, intoxicando meus olhos com belezas da natureza. E rezaria pela glória de um pôr-do-sol colorido. Creio que nessa noite não conseguiria dormir.
Esse dia eu dedicaria a uma breve visão do mundo, passado e presente. Como gostaria de ver o desfile do progresso do homem, visitaria os museus. Ali meus olhos, veriam a história condensada da Terra -- os animais e as raças dos homens em seu ambiente natural; gigantescas carcaças de dinossauros e mastodontes que vagavam pelo planeta antes da chegada do homem, que, com sua baixa estatura e seu cérebro poderoso, dominaria o reino animal.
Várias
vezes pensei que seria uma benção se todo ser humano, de repente, ficasse cego
e surdo por alguns dias no principio da vida adulta. As trevas o fariam
apreciar mais a visão e o silencio lhe ensinaria as alegrias do som.
De vez em quando testo meus amigos que
enxergam para descobrir o que eles vêem. Há pouco tempo perguntei a uma amiga
que voltava de um longo passeio pelo bosque o que ela observara. “Nada de
especial”, foi à resposta.
Como é possível, pensei, caminhar
durante uma hora pelos bosques e não ver nada digno de nota? Eu, que não posso
ver, apenas pelo tacto encontro centenas de objetos que me interessam. Sinto a
delicada simetria de uma folha. Passo as mãos pela casca lisa de uma bétula ou
pelo tronco áspero de um pinheiro. Na primavera, toco os galhos das árvores na
esperança de encontrar um botão, o primeiro sinal da natureza despertando após
o sono do inverno. Por vezes, quando tenho muita sorte, pouso suavemente a mão
numa arvorezinha e sinto o palpitar feliz de um pássaro cantando.
Às vezes meu coração anseia por ver tudo
isso. Se consigo ter tanto prazer com um simples toque, quanta beleza poderia
ser revelada pela visão! E imaginei o que mais gostaria de ver se pudesse
enxergar, digamos por apenas três dias.
Eu dividiria esse período em três
partes. No primeiro dia gostaria de ver as pessoas cuja bondade e companhias
fizeram minha vida valer a pena. Não sei o que é olhar dentro do coração de um
amigo pelas “janelas da alma”, os olhos. Só consigo “ver” as linhas de um rosto
por meio das pontas dos dedos. Posso perceber o riso, a tristeza e muitas
outras emoções. Conheço meus amigos pelo que toco em seus rostos.
Por
exemplo, você seria capaz de descrever com precisão o rosto de cinco bons
amigos? Como experiência, perguntei a alguns maridos qual a exata cor dos olhos
de suas mulheres e muitos deles confessaram, encabulados, que não sabiam.
O primeiro dia seria muito ocupado. Eu
reuniria todos os meus amigos queridos e olharia seus rostos por muito tempo,
imprimindo em minha mente as provas exteriores da beleza que existe dentro
deles. Também fixaria os olhos no rosto de um bebê, para poder ter a visão da
beleza ansiosa e inocente que precede a consciência individual dos conflitos
que a vida apresenta. Gostaria de ver os livros que já foram lidos para mim e
que me revelaram os meandros mais profundos da vida humana. E gostaria de olhar
nos olhos fiéis e confiantes de meus cães, o pequeno scottie terrier e o
vigoroso dinamarquês.
No dia seguinte eu me levantaria ao
amanhecer para assistir ao empolgante milagre da noite se transformando em dia.
Contemplaria assombrado o magnífico panorama de luz com que o Sol desperta a
Terra adormecida.
Minha
parada seguinte seria o Museu de Artes. Conheço bem, pelas minhas mãos, os
deuses e as deusas esculpidos da antiga terra do Nilo. Já senti pelo tacto as
cópias dos frisos do Paternon e a beleza rítmica do ataque dos guerreiros atenienses.
As feições nodosas e barbadas de Homero me são caras, pois também ele conheceu
a cegueira.
Assim, nesse meu segundo dia, tentaria
sondar a alma do homem por meio de sua arte. Veria então o que conheci pelo
tacto. Mais maravilhoso ainda, todo o magnífico mundo da pintura me seria
apresentado. Mas eu poderia ter apenas uma impressão superficial. Dizem os
pintores que, para se apreciar a arte, real e profundamente, é preciso educar o
olhar. É preciso, pela experiência, avaliar o mérito das linhas, da composição,
da forma e da cor. Se eu tivesse a visão, ficaria muito feliz por me entregar a
um estudo tão fascinante.
À noite de meu segundo dia seria passada
no teatro ou no cinema. Como gostaria de ver a figura fascinante de Hamlet ou o
tempestuoso Falstaff no colorido cenário elisabetano! Não posso desfrutar da
beleza do movimento rítmico senão numa esfera restricta ao toque de minhas
mãos. Só posso imaginar vagamente a graça de uma bailarina, como Pavlova,
embora conheça algo do prazer do ritmo, pois muitas vezes sinto o compasso da
música vibrando através do piso. Imagino que o movimento cadenciado seja um dos
espetáculos mais agradáveis do mundo. Entendi algo sobre isso, deslizando os
dedos pelas linhas de um mármore esculpido; se essa graça estática pode ser tão
encantadora, deve ser mesmo muito mais forte a emoção de ver a graça em
movimento.
Na manhã seguinte, ávida por conhecer
novos deleites, novas revelações de beleza, mais uma vez receberia a aurora.
Hoje, o terceiro dia, passarei no mundo do trabalho, nos ambientes dos homens
que tratam do negócio da vida. A cidade é o meu destino.
Primeiro, paro numa esquina movimentada,
apenas olhando para as pessoas, tentando, por sua aparência, entender algo
sobre seu dia-a-dia. Vejo sorrisos e fico feliz. Vejo uma séria determinação e
me orgulho. Vejo o sofrimento e me compadeço.
Caminhando pela 5ª Avenida, em Nova
York, deixo meu olhar vagar, sem se fixar em nenhum objeto em especial, vendo
apenas um caleidoscópio fervilhando de cores. Tenho certeza de que o colorido
dos vestidos das mulheres movendo-se na multidão deve ser uma cena espetacular,
da qual eu nunca me cansaria. Mas talvez, se pudesse enxergar, eu seria como a
maioria das mulheres – interessadas demais na moda para dar atenção ao
esplendor das cores em meio à massa.
Da 5ª Avenida dou um giro pela cidade –
vou aos bairros pobres, às fábricas, aos parques onde as crianças brincam.
Viajo pelo mundo visitando os bairros estrangeiros. E meus olhos estão sempre
bem abertos tanto para as cenas de felicidade quanto para as de tristeza, de
modo que eu possa descobrir como as pessoas vivem e trabalham, e compreendê-las
melhor.
Meu terceiro dia de visão está chegando
ao fim. Talvez haja muitas atividades a que devesse dedicar as poucas horas
restantes, mas aço que na noite desse último dia vou voltar depressa a um
teatro e ver uma peça cômica, para poder apreciar as implicações da comédia no
espírito humano.
À meia-noite, uma escuridão permanente
outra vez se cerraria sobre mim. Claro, nesses três curtos dias eu não teria
visto tudo que queria ver. Só quando as trevas descessem de novo é que me daria
conta do quanto eu deixei de apreciar.
Talvez este resumo não se adapte ao
programa que você faria se soubesse que estava prestes a perder a visão. Nas
sei que, se encarasse esse destino, usaria seus olhos como nunca usara antes.
Tudo quanto visse lhe pareceria novo. Seus olhos tocariam e abraçariam cada
objeto que surgisse em seu campo visual. Então, finalmente, você veria de
verdade, e um novo mundo de beleza se abriria para você.
Eu, que sou cega, posso dar uma sugestão
àqueles que vêem: usem seus olhos como se amanhã fossem perder a visão. E o
mesmo se aplica aos outros sentidos. Ouça a música das vozes, o canto dos
pássaros, os possantes acordes de uma orquestra, como se amanhã fossem ficar
surdos. Toquem cada objeto como se amanhã perdessem o tacto. Sintam o perfume
das flores, saboreiem cada bocado, como se amanhã não mais sentissem aromas nem
gostos. Usem ao máximo todos os sentidos; goze de todas as facetas do prazer e
da beleza que o mundo lhes revela pelos vários meios de contacto fornecidos
pela natureza. Mas, de todos os sentidos, estou certa de que a visão deve ser o
mais delicioso.